Depoimento: Sabedoria da Preta

Era eu uma negrinha bem bonitinha! Que nascera na senzala do interior desta Terra que diziam desde então, ser prometida. Talvez antes não acreditasse, talvez hoje muitos não acreditam, mas quero crer e trabalho para tal!
Nasci tão negrinha que chegava a brilhar! Cresci e aos poucos fui percebendo que era diferente daquelas meninas da casa grande. Aliás, eu só podia entrar lá para trabalhar. Servir aquelas menininhas tão branquinhas, mas eu adorava!
Aliás, sempre que podíamos, brincávamos... Só que um dia percebi que não podia brincar a vontade com elas. Apanhei tanto que minha vozinha teve que colocar sal grosso nas feridas. Chorei muito, mas a Bianca e a Letícia também choraram - eram as “patroinhas”, minhas amigas!
Minha vozinha me explicou então, pela primeira vez o que era a diferença de cor. O que isso causava...
- Mas só por que eu não sou branquinha? Isso não é justo!
- Perante os homens é, minha filha!
- E perante Deus?
- Também... Só que de um jeito diferente...
- Diferente?
- Sim. Para Deus, é bom ter cores diferentes. Mostra a Sua grandeza e criatividade! Mostra que Ele é um grande artista e que gosta de fazer vários tipos de beleza!
- Mas e por que somos tratadas assim?
- Por que o homem branco, ainda acredita que Deus o criou como a mais bonita criatura...
- Não entendi... Se eles acham mais bonitos, por que têm que bater e fazer a agente trabalhar pra eles...
- Não maldiga o trabalho minha filha! Antes sejam eles a fazer maldade do que nós! Preste atenção! Nunca faça maldades! Mesmo que os outros mereçam! A justiça é de Deus! Não nossa! Quem com ferro fere, com o ferro será ferido!
Fiquei pensando, eu tinha uns sete anos de idade... Minha vó era a mulher mais sábia do mundo! Anos depois, por ela ter quebrado uma porcelana da patroa branca, foi pro tronco e apanhou tanto que não conseguiu resistir... Desencarnou ali mesmo sem derramar uma gota de lágrima. Ela sorriu o tempo todo pra mim enquanto o chicote batia em seu lombo... Antes de ir, ela disse: “Fiota, lembre: nunca faça maldades”.
Prometi pra ela que não seria malvada... Infelizmente, os homens brancos não pensavam assim. Como eu era bela, fui várias vezes violentada... A “patroinha” Bianca sempre me auxiliava, depois que a mãe dela morreu do coração. Ela chegou a expulsar um dos capatazes da fazenda, por ter judiado de mim.
Eu era uma ótima cozinheira e curandeira. Aprendi com minha vozinha. Só que um dia, o marido da “patroinha” Letícia me quis e eu não o quis, pois gostava do Tonho, um escravo bom e trabalhador. O patrão tentou abusar de mim e o Tonho chegou na hora... Brigou com o patrão e o matou... Tonho tentou fugir, mas pegaram ele... Teve o mesmo fim da minha vó... E a “patroinha” Letícia me expulsou da fazenda, mesmo a contragosto da “patroinha” Bianca.
Confesso que senti uma raiva na hora, mas lembrei da minha vó: “nunca faça maldades”.  Pedi a Deus para me dar forças e não pensar mal da “patroinha” Letícia, afinal ela tinha perdido o marido... Agradeci por tudo e parti sob olhar esnobe dela... Mas poderia ter sido pior... Ela poderia ter me vendido, em vez disso, deu-me a liberdade... Quando já estava longe, a “patroinha” Bianca me alcançou a cavalo e me trouxe uma trouxa de roupas e comida.
- Vá com Deus Fiota – foi assim que fiquei conhecida por todos, até hoje! Obrigada por tudo! Não fique com raiva de nós... Deus vai lhe abençoar.
Eu chorei e ela me abraçou com carinho! Naquele momento eu vi que a cor da pele não importava. Ela era minha irmã que me amava como igual!
Cultivei aquilo no meu coração e envelheci numa cabaninha de uma estradinha pouco movimentada de Minas Gerais... Curei muita gente doente por ali. Procurei nunca fazer maldade e só fazer o bem! Vivi só, mas fui feliz cuidando dos doentes que Deus me mandava...
Quando morri, fui acolhida por tantos anjos! Foi tão bonito!
- E agora? O que vai acontecer?
- Você quer continuar trabalhando e ajudando os outros?
- Quero!
- Então que seja feita a vontade de Deus! – dizendo isto, aquele anjo bonito se transformou na minha vozinha... Eu chorei e abracei-a cheia de saudades!
Também encontrei Tonho e sempre que posso cuido dele. Hoje ele é um jovem branquinho como um leite morando em São Paulo pra buscar melhorar sua vida eterna! Encontrei Bianca, ela foi uma das anjas que me recebeu e hoje somos companheiras de trabalho aqui no Instituto Flor de Luz. Trabalhamos com a conscientização de que não existem diferenças entre as criaturas de Deus. São apenas aparências ilusórias!
Ah! Também encontrei “patroinha” Letícia que me pediu perdão e hoje já está de volta vivendo na carne. Uma mulatinha linda morando no sul do país, lutando para ser uma pessoa de bem! Sempre que podemos, nós conversamos e tento animá-la para não desistir da vida que é sempre uma prova!
Enfim, essa foi a minha experiência. Somos todos irmãos, filhos de um mesmo Pai. Então, qual é a lógica do preconceito? Do racismo? Busquemos trabalhar isso positivamente e lembrem-se: nunca façam maldade! É o primeiro passo para fazer o bem!

Fiota, 09.09.13,  psicografado por Jerônimo Marques.

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