Uma Simples Canção
Uma Simples Canção
Caminhando na praia estava
Ernesto, certo dia...
Levantara cedo e preocupado com
sua existência, mal conseguira dormir... Tinha pensado muito naquela noite em
desistir... Parecia tudo errado... O que ele fazia ainda vivo? Se existia um
Deus com certeza não se preocupava com ele...
Sentia-se traído por amigos,
ex-esposa, até mesmo filhos... Ele que era um grande homem respeitado pelos
seus negócios. Viajado e experiente, estava cheio de vida e dinheiro em várias
contas bancárias... Mas sentia-se só. Sua mulher o deixara há muito, não por
traição, mas por desgosto e solidão de uma vida a dois que parecia mais vida a
“um”... Os filhos, hoje um rapaz de vinte e outro de dezoito, não sabiam
direito o que era ter um pai. Ausente de tudo, parecia querer compensar toda
esta distância com dinheiro, presentes e tudo o que o dinheiro poderia comprar.
Um roteiro nada novo e nem ousado. Até comum e que deveria estar desusado...
Mas real, muito real.
Ernesto, sentindo-se
abandonado, como fizera com os seus por todo este tempo decidira-se isolar-se
em vez de enfrentar de frente o problema. Foi para uma de suas casas de praia
no litoral nordestino. Sua cabeça fervia, e por isso o sono não vinha, e nem a
fome, nem nada mais... Só desgosto e desilusão... Compaixão por si mesmo... E
egoísmo inconsciente que nem mesmo percebia.
Pensara então em se jogar no
fundo do mar. Em seu egoísmo achava que assim os seus lhe dariam a atenção, o
carinho e o amor que nunca cultivara. Depois então, daquela noite em claro,
estava decidido! Jogaria seu corpo no mar e deixaria as ondas levarem-no.
Deixaria apenas uma carta cheia de mágoas e tristezas, arrependimentos e
acusações... Egoísmos e vaidades, melindres orgulhosos, se é que isso não seja
um exagero...
Após fechar a carta e colá-la
sobre a mesa da sala a fim de ficar bem visível para provocar dor e
arrependimento aos seus quando a encontrassem... Depois o seu corpo... Saiu
determinado! Começou a andar pela praia, mas logo nos primeiros metros, sua
coragem foi se esvaindo, talvez pelo instinto de sobrevivência, ou por que no
fundo sabia que a culpa de todo aquele isolamento era dele mesmo, ou por que
seu anjo guardião ainda procurava inspirá-lo a ter dignidade e bom senso em
vida, antes que se complicasse ainda mais...
Não se sabe ao certo, mas ele
passou a andar pela praia por muito tempo, até que mais ou menos as nove horas
de uma manhã que variava entre o nublado e o sol ameno, sem perceber antes,
começou a aguçar sua audição e uma bela voz infantil lhe chamou a atenção
entoando certa música conhecida e bela, inspirada há anos pelos anjos da arte a
fim de que a humanidade procurasse pensar mais sobre a vida, sobre o valor das
coisas e das pessoas, sobre o amor...
“Certa vez... eu ouvi alguém...
cantar... Que além... sob o arco-íris há um lugar...”
Era uma voz bela, afinada com
certeza... Quando ele parou para procurar a dona daquela bela voz pequenina e
potente, viu uma garotinha negra de seus sete, oito anos. Estava ali, na areia
trabalhando junto a outros irmãos, com certeza, remendando buracos na rede de
pescar. Os pais estavam um pouco mais a frente se preparando para ir ao mar uma
vez mais... Era uma bela cena.
Os irmãozinhos sorriam para
ela, e alguns dos quatro que tinha, tentavam acompanhar a letra que mal podiam
entender... No momento mais belo da canção, o pai se aproximou e junto da filha
entoou com vibração, sorriso no rosto e amor pela garotinha e os seus
irmãozinhos. Pareciam os dois, serem profissionais, embora fossem gente comum,
muitas vezes marginalizados pelos ditos cidadãos de bem, apenas por serem
pobres e negros... Pobres na visão do capital, mas eram extremamente ricos de
amor, alegria e paz!
Ao findar a canção, o pai deu
um beijo na testa da filha e a incentivou a continuar sempre cantando. Pediu
com delicadeza a todos os filhos para que voltassem ao lar e ficassem com a tia
e a mãe que preparariam o almoço... É claro que o pai percebeu Ernesto
olhando-os... E antes que esse pudesse sair de fininho sem ser descoberto, o
homem foi até ele com educação perguntando se podia auxiliá-lo...
- Já ajudou amigo...
- Ajudei?
- Sim... Parece que só agora vi
o quanto esqueci de ser pai em minha vida...
Mal terminou a fala e começou a
chorar... O pescador condoído, segurou seu braço e o levou para sua casa
embaixo de um cajueiro e o fez sentar numa rede simples e confortável. Ali, os
dois passaram horas conversando. Ernesto almoçou com aquela família, desabafou,
ouviu as sugestões e conselhos, pela primeira vez sem orgulho e no começo da
noite resolveu voltar para a casa da praia, não sem quase implorar para poder
voltar outro dia e agradecer a acolhida e auxílio simples, mas verdadeiro que
recebera ali...
Ernesto era um novo homem,
embora já com seus cinquenta anos... Rasgou a carta, tomou um banho e dormiu
como há muito não fazia. No outro dia voltou à casa de Sérgio, o pescador e
agradeceu a ele e toda a família por salvarem-no de cometer um erro
gravíssimo... Ofereceu dinheiro para a família que não aceitou, mas depois de
um tempo ajudou doando alguns barcos para a comunidade local e oferecendo
estrutura para construir uma escola e um posto médico ali naquela vila de
pescadores isolada do mundo, mas muito mais humana que muitos locais
civilizados!
Anos depois, vemos Ernesto
casando-se novamente com sua ex-esposa, tendo como dama de honra a menininha da
canção, como padrinho o pescador e testemunha um dos próprios filhos... Ernesto
mudara completamente. Gastou os dez anos seguintes àquele dia na praia para
buscar ser pai, ser um esposo e reconquistar os corações que pelo egoísmo e
orgulho não tivera a coragem de criar laços. E tudo começou com uma voz
infantil... Ah! Selena, a menina, seu pai Sérgio e toda a família foram
convidados de honra, como toda a vila de pescadores, afinal o casamento foi realizado
lá, em meio a gente humilde, mas honesta, sincera e bela como a vida!
Jesair Pedinte e amiGOS –
21.08.15
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