O Sertanejo

 

O Sertanejo

“Quando vagava pelo mundo com a minha viola a cantar nas esquinas e nas estradas... Nas ruas e nas calçadas, via no sorriso dos poucos que por mim passavam, no sussurrar daqueles que me acompanhavam, com vozes roucas e até desafinadas, um pouco do amor que sempre quis no mundo.”

Foi o que me disse um amigo que vou chamá-lo de Zé. Fora menino pobre que desde cedo trabalhara com o pai na plantação. Seu pai tinha uma viola e a noite cantava para ele e a família, música do sertanejo brasileiro. Com suas histórias e gracejos, dramas e conquistas de uma vida simples e feliz, longe das cidades e de toda tecnologia.

Era realmente uma vida tranquila. Mas que acabou quando o pai fora picado por uma cascavel durante a colheita da plantação de milho... A família numerosa, ficou a mercê do “destino”, que os levou para outros lugares desconhecidos. A mãe e os cinco irmãos ainda muito pequenos sofreram a miséria da fome e a falta de um teto. E o menino ainda cedo trabalhava o dia todo para ter ao menos o que comer... Zé ficara com a viola do pai. A mãe que sabia um pouco tocar, ensinou-lhe o básico, o mínimo do mínimo. E ele talvez lembrando de outras existências, talvez inspirado pelos anjos da vida, foi experimentando e aprendendo vendo outros tocarem por aí...

Cresceu e ajudou a sustentar a mãe que também morrera antes dele completar os dezessete anos. Sustentou os irmãos, e com o tempo, a música, o talento e a voz ganhou uns trocados... Mas a vida é dura no sertão. E um novo chefe lhe separou dos irmãos... Primeiro as duas menores, foram raptadas e levadas para longe... E depois os dois maiores se perderam em vícios ou pelas injustiças presentes em fazendas onde os patrões tinham seus empregados como se fossem escravos... Ele conseguira fugir com sua viola...

E passou a cantar nas ruas e esquinas... Nas calçadas e cidades da vida. O sofrimento do sertanejo. Foi assim, que certo dia, um homem que vivia da arte e da música, o viu cantar numa ponte dessas grandes cidades, onde o movimento é grande e os artistas estão sempre a mostrar algo de si. Talvez ele não fosse o mais talentoso e nem a voz mais bela que Renan havia ouvido e visto.. Mas o que lhe chamou a atenção foi a forma que ele tocou de coração aquelas canções.

Ao fim da apresentação, Renan chamou Zé num canto e lhe perguntou se não queria trabalhar para ele que era produtor de música. Renan, apesar do que muitos poderiam pensar, não era um aproveitador, buscava sempre ser humano e correto, justo no proceder. Era um homem honesto.

Como Zé não tinha nem mesmo teto, Renan ofereceu por uns dias o seu lar. Embora a esposa e os filhos tivessem ficado meio ressabiados, com os dias, a discrição e a alegria de Zé, viram que haviam ganhado um grande amigo.

Os dois iniciaram então uma parceria. Zé era um compositor nato. Renan até tentou que ele gravasse um trabalho solo... Mas Zé dizia que não era bom pra isso. Não queria nada de fama e nem nada diferente. Queria viver como os pássaros com a liberdade de poder tocar e cantar a vida.

Renan o respeitou, mas o incentivou. Outros artistas então, suas composições gravaram e o sucesso chegou. O antes humilde sertanejo, agora era grande compositor e tinha já o seu dinheiro pelo seu labor.

Mas um dia, Renan percebeu que o amigo Zé não estava feliz... E este confessou que era por que sentia saudades dos seus irmãos... Seus pais... Sua vida... Queria encontrá-los... Renan então resolveu mais uma vez ajudá-lo... Infelizmente descobriram que todos haviam partido desta para outra vida... Uns de forma trágica, e uma de suas irmãs pelo menos havia bem vivido e formado família. Ele descobrira que tinha uma sobrinha.

Esta sobrinha morava no interior de São Paulo e convidou o tio a passar um tempo com ela e sua família. A menina era a cara de sua irmã e era amável, delicada como ela... Lembrava sua mãe... Ela atendia diversas crianças de rua, além de outros moradores todas as semanas num terreno baldio na periferia. Zé então, perguntou se poderia cantar para aquele povo as músicas que compunha e sabia... A sobrinha o incentivou e lá foi o Zé cantar e tocar sua viola antiga.

Logo aquele povo todo não só ia pela sopa e comida... Mas também pela cantoria do seu Zé que tão feliz ficou que com o dinheiro que tinha conquistado comprou aquele e outros terrenos vizinhos e junto da sobrinha resolveram construir um galpão, depois algumas salas, depois uma oficina, uma quadra e por fim... Depois de anos virou uma escola, uma oficina de ensinar trabalhos manuais, um centro comunitário.

Seu Zé, estava sempre por lá, com sua sobrinha e família a gerir e doar não só comida, não só roupa, não só dinheiro, mas dedicação, amor e carinho. Claro, nem tudo foram flores. Muitas vezes foram ameaçados, roubados, tiveram suas construções depredadas... Mas não desistiram. O dinheiro das músicas do seu Zé era sempre destinado aquele lugar de doação.

Renan o amigo de sempre também ajudava muitas vezes e fizera diversas doações... Até que esses dias... Seu Zé que gostava de ficar num dos pátios do centro comunitário, onde havia um jardim, cantava uma música de saudade e olhava a lua cheia, bela e benfazeja a emitir seus raios cintilantes banhando sua face já enrugada... Até que da luz do luar surgiu nova luz que desceu do céu em forma de um anjo... Até que ele finalmente viu:

- Meu filho! A quem muito deu e muito recebeu. A quem muito devo e amo! O Senhor me mandou vir até aqui buscar você, meu querido! Seus dias de saudade terminam aqui. Embora terá saudade de tudo isso que construiu! Sua amada sobrinha Ana é também sua irmã Joana que morrera cedo quando era jovem... Agora estou aqui e seu pai te espera para cantar uma música em sua homenagem! Vem, meu filho! Vem para os meus braços descansar o corpo velho e cansado, venha recomeçar uma vez mais!

Dizendo isso, o espírito de sua genitora o puxara ao peito . Enquanto o espírito de Zé levitava rumo à luz do luar junto à sua mãe, seu corpo caia como pluma no banco do jardim com um sorriso tão belo no rosto que ninguém teve dúvida de que morrera o seu corpo numa noite feliz, em paz absoluta como poucos conseguem ter em vida.

Jesair e amiGOS – homenagem a Seu Zé, um amigo simples e de coração enorme, como muitos sertanejos e muitos homens e mulheres simples da vida eterna 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Bora Viver

Livres

Culpabilidade