Depoimento: A Vitela
Eram quatro horas da tarde. Dia escuro e chuvoso. Plena quarta-feira. Apenas aqueles que trabalhavam procuravam estar nas ruas por força maior e não por vontade própria, exceto aqueles que tinham negócios escusos e se aproveitam destas situações para se esconderem, assim como as suas atitudes levianas.
Alguns poucos tinham objetivos louváveis e fraternos. Era um momento difícil e de recessão... E lá estava ela, Andreza a caminhar pelas ruas tentando se proteger por um manto velho, enegrecido e encharcado, pois a chuva não dava tréguas.
Procurava algo para comer. Tinha dois filhos pequenos para alimentar e desde o dia anterior não havia conseguido nada. Ela... Uma jovem senhora que havia experimentado a prova da viuvez antes dos vinte anos de idade com a morte prematura de seu amado esposo na Guerra dos Cem Anos, já praticamente no fim deste longo e tenebroso conflito entre Inglaterra e França. Gerard, seu esposo desencarnara atingido tragicamente por estilhaços de uma catapulta destruída à sua frente.
Andreza, que era espanhola, mas desde pequena havia se mudado com os pais - que eram ciganos - para França, em Avignon, conheceu Gerard ainda com seus treze anos. Amor à primeira vista e logo o casamento. Um casal jovem e belo, logo tiveram os dois filhos que eram a alegria do casal.
Gerard era inteligente e um bom comerciante! Apaixonado pela vida militar, ingressou no exército Francês motivado pelas recompensas que dariam tranquilidade para ter uma vida mais confortável. Ficaria apenas cinco anos no exército, no máximo e logo voltaria para sua família a fim de oferecê-la o melhor, mas infelizmente sofreu o acidente. Desde então, Andreza que também já havia perdido seus pais dois anos antes em vista de uma epidemia na cidade de Lion, onde moravam, acabou ficando só. Passou viver então de limpar casas dos emergentes comerciantes ou lavar roupas para sustentar-se. Contudo, como era muito bela, acabava assediada por homens inescrupulosos que queriam apenas satisfazer seus interesses carnais... Muitas vezes, era maltratada por madames e mulheres que sentiam ciúmes de seus esposos incontroláveis, outras vezes sentiam inveja de sua beleza natural.
Logo passou a se vestir como uma velha mulher, escondendo até mesmo o rosto quando podia, mas em poucos dias ou meses não conseguia esconder sua beleza e tudo se repetia. Bravamente lutava e lutava, mas naquele dia estava quase se entregando às vibrações negativas.
Havia quase três dias que não comia e seus filhos, desde o dia anterior. Tinha em sua cabeça a lembrança do choro deles quando saiu desesperada para conseguir alimentos. Contudo, não tinha dinheiro, joias ou qualquer objeto de valor. No auge do desespero veio o pensamento de vender a si mesma em troca de alimento que pudesse matar a fome dos filhos amados.
Entrou numa taverna e logo buscou pelo olhar quem poderia pagar-lhe o que queria... Mas se arrependeu imediatamente... Enojou-se de si mesma, conquanto, já era tarde. Alguns homens insanos e bêbados já haviam notado sua beleza, pois ela se descobrira da manta e pela roupa molhada viam-se suas formas bem definidas atraindo olhares e sentimentos infelizes. Ela quis correr, mas não pode, pois ficou paralisada. E viu avançar sobre si um homem asqueroso, babando... Ela finalmente conseguiu reagir e começou a gritar socorro, no que infelizmente os demais presentes fingiam não ser com eles... Indiferença tão comum ainda hoje!
Por um momento de tontura do homem embriagado e de força inexplicável provinda daquele momento de tensão, Andreza conseguiu se desvencilhar do infeliz e saiu correndo para a rua enlameada... No que foi perseguida e logo foi vista por outro homem que vinha também coberto por uma capa e chapéu escuro. Este ouviu seus gritos e com a aparição do bêbado entendeu a situação. Desembainhou sua espada e impediu que o assédio fosse confirmado.
O cavalheiro a perseguiu também, pois amedrontada e envergonhada de si, buscou sair dali para o mais longe possível! Entretanto, ele a capturou e procurando levá-la a um lugar coberto e aberto, mesmo sob gritos e protestos de Andreza, a fez sentar com a mão posta em sua boca a fim de que ela parasse com os gritos.
- Acalme-se minha Senhora. Perdoe-me o uso da força, contudo, tu me obrigaste a ser mais severo. Não estou aqui com segundas intenções. Apenas a vi perseguida por aquele homem grotesco e procurei auxiliar-te. Vou tirar a mão de sua boca e me afastar um pouco... Caso queira falar algo ou pedir estarei aqui a sua disposição!
Andreza acalmou-se um pouco... Olhando ainda amedrontada, tremendo pelas grandes emoções de momentos antes buscou se tranquilizar. O magnetismo daquele homem lhe trouxe serenidade e ela sentiu que poderia confiar nele. Assim, timidamente balbuciou chorando lágrimas dolorosas.
- Perdoe-me senhor. Mas por caridade, não sei mais o que fazer... – contou de uma vez toda a sua história e no fim completou – Assim, estou procurando o que comer para dar aos meus queridos filhos. Estou desesperada, não sei mais o que fazer, contudo, ainda tenho honra e brio em meu ser e não posso entregar o meu corpo para tal!
- Acalme-se minha senhora, eu posso te auxiliar caso me permita.
Como que desconfiando um pouco, ela começou a temer tamanha bondade que sabia ser difícil de encontrar num homem perante uma mulher fragilizada.
- Meu nome é François D’alembert. Sou oficial do exército de nossa pátria, retorno da península ibérica e estava encaminhando-me para o meu lar para rever os meus filhos e a minha amada esposa. Imagino o quão deve estar sendo difícil para você passar por tudo isso. Amo meus filhos e faria tudo o que fosse ao meu alcance para não deixar com que passassem fome.
Um pouco mais aliviada, Andreza respondeu.
- Meu nome é Andreza, senhor.
- Muito bem Andreza. Posso lhe auxiliar, contudo, só peço que confie um pouco nas minhas boas intenções. Sei que é uma posição difícil de se aceitar, ainda mais por ter passado por emoções fortes a pouco tempo.
- Sim... É verdade senhor. Mas como eu poderia confiar? O que pensas em fazer para me auxiliar?
- Primeiro, levando-te à tua casa, mas antes comprarei alguns mantimentos para que tenham o que comer hoje. Aceitas?
Ela receosa, mas ao mesmo tempo esperançosa de poder ter um alimento para os seus amados filhos, mesmo temendo, resolveu aceitar.
- Ótimo Andreza! Vamos fazer o seguinte... Tenho algumas moedas aqui comigo, passaremos ali na venda de um conhecido meu. Tu vais pegar todo o alimento que desejares e eu pago. Depois disso, tu sobes em meu cavalo e eu ficarei a pé andando próximo para que possas me conduzir à tua casa e quando chegar, despeço e volto ao meu caminho. Aceitas?
- Sim...
Desta forma ficou definido e foi feito. Na venda de mantimentos Andreza começou a separar timidamente alguns alimentos sob os olhares desconfiados do dono que só foi acalmado pela bolsa de moedas de ouro de François. No fim, havia uma boa quantidade de alimentos. Andreza temia angustiada ainda achando que aquilo tudo poderia ser apenas uma zombaria daquele cavaleiro. Mas não foi o que viu. Realmente ele cumprira o que havia prometido.
Ainda debaixo de chuva, os dois andaram até uma pequena choupana afastada da cidade, pobre, cheia de goteiras, paredes sujas por fora e certo mofo. Contudo, apesar de simples era bem organizada e limpa. As crianças eram alegres, realmente lindas e inteligentes. François após ajudar a colocar as compras dentro da casa e cumprimentar os meninos disse à Andreza.
- Agradeço pela confiança Andreza. Agora devo ir. Caso queira trabalhar procure-me amanhã às 17h em frente do meu palácio na rua principal de Lion. Cores claras, branca e azul e detalhes em vermelho. Estarei lá com minha esposa e filhos e a apresentarei.
Falando isso, virou as costas e sem dar tempo para Andreza agradecer ou retrucar saiu apressadamente em seu cavalo. No outro dia Andreza esteve a pensar muito sobre o que fazer. Ir-se-ia ou não à procura daquele benfeitor. Ao mesmo tempo que gostaria, por ele ter sido digno de confiança, pensava que poderia ser apenas uma armadilha. Quem sabe ele só não queria o que a maioria dos homens desejam com mulheres bonitas e sozinhas?
Pensou, pensou e logo adormeceu no início da tarde registrando um belo sonho. Seu espírito encontrava-se com seu anjo da guarda, uma forma feminina de raríssima beleza!
- Oh minha querida amiga Andreza! É muito bom vê-la guardando-se perante os chamativos do mundo, procurando ser mãe e mulher digna, evitando os prazeres e facilidades que um belo corpo pode proporcionar àquela alma ainda inexperiente e até indiferente de seus deveres em vida.
- Sim, minha querida “mãezinha”! Mas é tão difícil viver assim. Não aguento mais! O que faço?
- Acalme-se! Não vês que Deus já te enviou um amigo do coração para lhe auxiliar?
- Aquele senhor? Mas ele pode estar querendo me enganar como muitos outros homens...
- Minha querida filha. Nem todos os homens são inescrupulosos. Muitos são fiéis a si mesmos, aos seus e principalmente a Deus! Confie um pouco mais. Apesar de não conhecê-lo agora, já viveram juntos como irmãos em outras vidas. Confie na mão que ele te estende e não se arrependerás.
- Então devo ir?
- Você sabe que é uma oportunidade. Agora, a escolha será tua!
Dizendo isso, aquele espírito maravilhoso, de luz imensurável foi se desvanecendo e Andreza acordou. Tentou fixar ao máximo aquele sonho que acabara de ter. Sonho tão real que não poderia duvidar da veracidade daquelas informações. Sabia que vivera outras vidas, pois seus pais sempre a ensinaram esta verdade divina, então tomou coragem, olhou seus filhinhos dormindo tranquilos novamente, depois de terem se alimentado fartamente no almoço, graças aquele benfeitor.
Passou o restante do dia arrumando o lar, cuidando dos seus queridos filhos e após deixar tudo arrumado saiu deixando os seus bem acompanhados por uma querida vizinha que sempre estava pronta para auxiliá-la.
Chegando ao local indicado um pouco antes ficou apreensiva e um pouco duvidosa. Será mesmo que deveria ali estar? Algo dizia que sim, mas a incerteza e falta de fé pedia para que ela se afastasse dali. Foram longos minutos para seu coração e quando ela decidira por ir embora foi salva pela chegada de François e sua família.
- Olá minha querida amiga. Desculpe-me o pequeno atraso... Está aí há muito tempo?
- Oh... não, acabo de chegar...
Virando-se para sua esposa continuou:
- Tereza, esta é a mulher que lhe falei. Acredito que ela pode ser uma ótima companhia para ti e nossos filhos auxiliando-te nos deveres do lar a fim de que possas se dedicar um pouco mais aos carentes deste mundo.
Abraçando-a de forma espontânea e sorridente, Tereza deu as boas vindas:
- Seja muito bem vinda Andreza! Deus sempre nos encaminha para estarmos no lugar e na hora certa!
- Como o seu marido esteve ontem?
- Sim... E como você está aqui hoje! Sinto que seremos grandes amigas! E nossos filhos também...
- Nossos filhos?
- Sim, você não os têm? Caso vá trabalhar conosco, deverá trazê-los para estar sempre os acompanhando na vida. Sei o quanto é difícil ter filhos, ainda mais não tendo ninguém para ampará-la.
Emocionada Andreza não sabia bem o que dizer, mas foram minutos de alegria e alívio... Acertaram tudo como seria dali em diante. Ela e seus rebentos morariam num quarto aconchegante com camas suficientes e confortáveis para os três. Ela trabalharia nos serviços gerais da casa, mas além de receber um salário teria roupas, comida para si e os filhos.
Na verdade, tudo aquilo fora apenas um reencontro de almas afins. Na espiritualidade Gerard estava feliz por poder auxiliar no encaminhamento de sua família. Andreza estava muito feliz e sempre procurava fazer o seu trabalho com a melhor qualidade possível, pois amava o que fazia e tinha os seus patrões como benfeitores.
Por outro lado, Tereza e François a tinha como irmã querida e seus filhos como sobrinhos do coração. Não havia distinção de tratamento entre os próprios filhos e os filhos de Andreza. Tiveram as mesmas oportunidades de crescimento na vida.
Era uma alegria só aos domingos, quando Andreza fazia sua especialidade culinária ao preparar deliciosa vitela, prato preferido de todos daquele lar e família espiritual. Com os anos passados, o desencarne dos patrões e da própria Andreza, os filhos do casal e da querida amiga mencionada sempre relembravam aqueles almoços em família.
Apesar de nem mais comerem a carne de vitela, pois não tinham mais esta necessidade, lembravam os momentos alegres decorrentes do esquecimento de qualquer diferença social. A vitela que era uma carne nobre era compartilhada com todos.
Assim, aqueles filhos aprenderam a sempre olharem os demais como irmãos, com os mesmos direitos e necessidades na vida. A vitela era apenas uma lembrança, mas os gestos nobres que os ensinaram a viver ficaram gravados na consciência por toda a vida! E isto salvou da miséria milhares de outras pelo aprendizado da prática do bem, por compartilharem o pão da matéria e também o pão do espírito.
Obrigada! Abigail – 15.10.12
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