Depoimento: Casulo Mental
Noite
escura, estava eu ali agachada, encolhida. Uma mistura de medo e frio. Pele
castigada, ferida, suja. Há quanto tempo estava naquele local? Não saberia
dizer ao certo, mas posso afirmar que muito havia se passado. Parecia que vivia
num inferno eterno, sem fim.
Minha
aparência? De uma menina de seus quinze anos, com um corpo de doze. Minha
história? Vivi nas ruas de uma grande cidade brasileira. Desde jovem fiquei
órfã, perdi de vista meus irmãos e passei a viver como muitas crianças
abandonadas nas ruas. Não tinha um travesseiro para me recostar. A fome
era companheira que sempre batia ponto, todos os dias, quase todas as horas. A
escuridão era minha companheira. As minhas amigas eram concorrentes pela
sobrevivência. Vez ou outra nos ajudávamos, mas quase sempre disputávamos um
pedaço de pão, algumas moedas, uma cola pra cheirar, um cigarro pra fumar, uma
bebida para esquentar.
A
vida na rua não tem luxo, só miséria, julgamento. “Vagabunda!” Perdi a conta de
quantas vezes escutei tal grosseria sobre mim. Quando estava sob o efeito da
cola, do álcool nem me importava. Ria e me divertia com aquilo. Era uma fuga,
pois na verdade, doía-me por dentro e por fora também. Aqueles que me
chamavam assim um dia tiveram a coragem de me perguntar do que eu precisava? O
que havia acontecido comigo para estar naquela situação? Podem acreditar que
não demorou muito para iniciar-me na prostituição. Acha que foi fácil? Que moça
não sonha em encontrar um príncipe encantado e ter sua primeira vez com o amor
de sua vida? Perder a virgindade de forma violenta. Quanta dor, não só física,
mas moral, vergonha de mim mesma! Não tive escolhas, nem muitas
oportunidades. Afinal quando tive mãos estendidas não sabia se podia confiar.
Nestas ocasiões roubava, fugia e às vezes me revoltava com as diferenças
sociais. Por que as donas dessas mãos estendidas tinham tudo que eu sonhava e
eu não tinha se quer um travesseiro para encostar a cabeça.
Lembro
que queria acreditar em
Deus. Ele devia ser bom sim, mas não pra mim! Afinal Ele me
dera aquela vida sofrida: era o que eu pensava. Quando comecei a me
prostituir, passei a não sentir mais fome. Vida fácil? Nem tentem ir por este
caminho “fácil” meninas! É um pesadelo difícil de sair. Ainda mais quando se é
viciada, as coisas pioram. A minha sorte? Morri cedo! Apenas com quinze anos.
Vítima de mim mesma, e da violência de um cliente, aliada aos efeitos de
drogas, bebidas, decaída moral.
Cheguei
ao plano espiritual sem compreender o que estava acontecendo comigo. Demorei a
entender que meu corpo havia morrido, mas eu estava viva. Não sei por qual
motivo, mas fiquei muito tempo naquele local encolhida, com frio. Ninguém se
aproximava de mim para fazer-me o mal! Talvez porque no último instante chorei
amargamente ao ver “um filme” de minha vida em questão de segundos. Pedi perdão
a Deus e disse de coração para mim mesma que eu queria recomeçar. Não sabia
como, nem onde. Mas gostaria. Fiquei muito tempo ali, pensando em minha
existência. Ninguém me abordava. A fome e o frio não me deixavam, mas era apenas
isso. Certa vez levantei os olhos e ousei abri-los! Percebi que não havia mais
escuridão. Estava num local claro, em meio a natureza, parecia um quadro que eu
vira um dia quando andava pelas ruas da cidade. Seria aquilo o paraíso? Só
podia ser coisa de Deus! Ele era bom, com certeza era coisa Dele!
-
Você tem razão! – Disse uma voz feminina, bem suave.
Quando
me virei, avistei uma senhora linda! Sorria para mim e me chamava para um
abraço! Corri até ela e me joguei em seus braços sem ao menos conhecê-la ou
perguntar se aquilo era verdadeiro. Se era permitido... Se eu podia fazer
aquilo. Abracei e fui abraçada como nunca fora antes. Chorei de alegria e
desfaleci, não sem antes dizer: “Obrigada, Deus. Você é bom!”.
Acordei
num quarto simples, limpo. Uma cama confortável! Muito mais do que qualquer uma
que havia me deitado na vida. Uma enfermeira veio me trazer uma comida pra
mim. Era um lanche gostoso e um caldo de frutas. Ela apenas sorriu e disse que
estaria por perto. Eu nada disse temendo e pensando como pagaria por
aquilo. Logo depois aquela senhora entrou e sorriu-me novamente dizendo:
"Não se preocupe minha filha. Aqui não é preciso ter dinheiro. Deus é que
te oferece um recomeço e para isso precisa estar bem". Depois de
algum tempo descobri que era a nossa querida Abigail. Ela havia sido minha
bisavó na existência a que me refiro. Minha última encarnação. Foi minha “Anja
da Guarda”. Pelo visto não dei muito ouvidos a ela. Mas hoje, sou eternamente
grata ao que ela fez por mim.
Já se
passaram mais de vinte anos. Sou trabalhadora do Instituto Flor de Luz. No
início disse que não poderia fazer isso, era uma pecadora! Abigail olhou-me nos
olhos com ternura e disse: "- Quem sou eu para te julgar? Lembre-se de
Jesus: '- Atire a primeira pedra quem estiver sem pecados!'. O que nós
precisamos é do que você se tornou e quer se tornar daqui em diante e não de
quem foi um dia!".
Nunca
esqueci essas palavras! Passei a estudar, aprender, trabalhar nos serviços mais
simples e hoje, além destes serviços pequenos, realizo outra atividade
simplória, mas que me fascina muito. Sou trabalhadora da equipe que recolhe
moças que viveram nas ruas. Coordeno ações para a recuperação destas irmãs, que
estão em situação semelhante a que eu estive. Apenas retribuo o que um dia
recebi!
Ainda
me pego pensando o que fiz para merecer tanta proteção naquele tempo em que
encolhida fiquei nas sombras. A resposta vem clara: estava num casulo mental,
para transformar como a lagarta velha na borboleta nova, que agora busca viver
o Evangelho do Senhor e logo retornará para vivificá-lo com todas as suas
forças! Deus esteja conosco!
Sandra
– 10.06.13, psicografado por Jerônimo Marques.
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