Um Pé de Moleque

Era uma noite chuvosa. Daniel preparava para deitar-se. Homem feito, pai de família com filhos crescidos. Aposentado. Vivia tranquilo financeiro e emocionalmente. Tinha uma boa formação, família unida, esposa maravilhosa. Quase um conto de fadas real. Eu disse, quase...
Mal sabia que tudo aquilo que possuía havia se consolidado de forma trágica... trazia em sua consciência um peso que por vezes parecia maior do que poderia suportar. Chegava a ficar mal, ofegante, vermelho quando essas “crises” lhe acometiam. Fizera inúmeros exames e nada... Constataram que poderia ser estresse, mas era a consciência que lhe cobrava...
Motivo? Há muitos anos, na sua juventude nutria uma afeição de amizade muito grande. Era o melhor amigo de Carlos. De certa forma o invejava, mesmo que inconscientemente, aquele que sempre o auxiliava em seus problemas e confusões. Era o amigo pra todas as horas. Estendia a mão quando ele caía e auxiliava a empurrá-lo ainda mais para cima quando já estava em alta...
Iniciaram após a faculdade, um negócio juntos. Sua facilidade em administrar economicamente qualquer negócio era coisa rara e aliada com a facilidade de seu amigo em conquistar clientes, e lidar com pessoas internas quanto externamente: era uma qualidade ímpar.
Sendo assim, Daniel começou a pensar que ele trabalhava e o amigo ficava com os louros, quando na verdade era apenas uma parceria perfeita, um precisava e necessitava do outro...
Mesmo assim, foram em frente. A empresa foi crescendo, os dois se casaram, constituíram suas famílias, filhos, esposas... Tudo perfeito. Os negócios cada dia melhores, mas aquele sentimento estranho sempre o dominava por vezes o tirando do sério e o pior de tudo é que Carlos era o único a perceber aquilo. Quando algo errado havia com seu melhor amigo, a medida que seu irmão de coração tentava auxiliá-lo, mais irritado Daniel ficava...
Certo dia Carlos, percebendo que a crise de Daniel amainara, convidou-o para uma caçada... Eles faziam isso desde muito jovens, desde o início da adolescência... Na verdade quase não caçavam nada, mas se divertiam muito quando saíam para tal programa.
Foram sozinhos e realmente foi um bom passeio, não conseguiram caçar nenhum bicho, mas se divertiram como nos velhos tempos. Daniel até se esquecera daqueles sentimentos ruins que vez ou outra os dominavam... Entretanto, não perceberam o passar das horas e o avançar das nuvens...
Uma tempestade os pegou de surpresa e longe dos seus automóveis estavam... Para piorar, estavam perto do rio que rapidamente subiu o nível das águas que os pegou de surpresa...
Para dentro das águas geladas e revoltosas foram os dois... Carlos um pouco mais a frente conseguiu em certo momento se agarrar num toco mais próximo da margem... Daniel que vinha mais atrás seguiu descendo quase inconsciente e de repente foi agarrado pelo amigo. Depois de alguns minutos agarrados no toco, lutando contra a correnteza o desespero começou a dominar Daniel que confuso com a agitação do momento achou que o amigo queria afogá-lo e começou a se debater como se estivesse lutando contra um feroz inimigo. Cego pelo momento acabou empurrando Carlos, só que este mais forte conseguiu se segurar e assim, com o movimento do empurrão Daniel soltou as mãos e foi para o leito do rio e este desceu novamente pela correnteza forte... Passado alguns segundos, Carlos tentando ver para onde ia seu amigo sentiu uma pancada na cabeça e desmaiou...
Horas depois, Carlos acordou numa margem do rio. Águas calmas, era noite. Estava frio. Não viu ninguém. Só lembrou do amigo Daniel... E agora? O que havia acontecido? Sim, os dois caíram... Ele havia salvado Daniel...mas este... Não, não era possível... Ele havia jogado seu amigo no rio... ? Não lembrava bem o que acontecera... Agora ele já devia estar morto... E ele? Onde estava?
Saiu da margem, ainda chovia fraco. Procurou e logo encontrou uma caverna... Algo estava estranho. Não conseguia sair de lá. Parecia sempre escuro. Passou muito tempo... Não tinha coragem de voltar pra casa e dizer que era responsável pela morte de seu amigo...
Um dia, orou pra Deus e pediu pra que pudesse revê-lo e pedir perdão...
Como num passe de mágica viu uma luz e foi levado para um hospital. Foi tratado e depois de muito tempo percebeu que havia desencarnado naquele dia... Um toco enorme o acertou na nuca e ele faleceu na hora... E seu amigo? Se ele também havia morrido, porque não o reencontrara ali.
Ninguém o respondia e depois de mais algum tempo finalmente lhe deram oportunidade de conhecer a verdade.
Daniel se salvara naquele dia graças à confusão mental que teve e em consequência o empurrou de volta às águas da correnteza, caso tivesse ficado o grande toco também o acertaria e os dois morreriam.
Daniel ficou dois dias perdido no mato, mas conseguiu sobreviver e foi encontrado por um lavrador. Foi levado ao hospital e logo liberado. Mas sentiu-se transtornado. Não conseguira auxiliar seu amigo e sentia-se culpado por sua morte. Contudo, ficara em silêncio...
Todos concluíram que fora um acidente e Daniel, mesmo sentindo-se culpado omitiu-se para sua família. Só confessou-se para a esposa do amigo no hospital, mas esta sabia que ele estava confuso e provavelmente se culpava por não ter salvo o seu amigo, pois chorava como uma criança. Tudo foi esquecido...
Mas naquela noite, anos depois do ocorrido, com os filhos já casados e na casa luxuosa que vivia com a esposa, o interfone do portão tocou longamente... Ainda acordado Daniel levantou-se e vários segundos depois chegou a frente da tela da câmera de vídeo e viu um cesto... O que seria aquilo?
Algo o empurrava para a curiosidade. Algo fora do comum. Sem pensar duas vezes saiu para ver o que era. Não havia ninguém mais ali, só aquele cesto... Quando abriu o portão ouviu um pequeno gemido... Era uma criança...
Sem pensar duas vezes o pegou e quando fitou o semblante daquele ser diante da claridade lembrou-se claramente do amigo Carlos há muito morto naquele dia fatídico...
Não podia ser, afinal nem acreditava que existia uma vida após a morte, quanto mais os mortos voltarem... Entretanto, decidiu ficar com o garoto abandonado à sua porta.
A cada dia que se passava aquela impressão inicial era mais forte. Tanto é que em homenagem ao amigo, ele o batizara com o mesmo nome. E as coincidências não paravam por aí. A olhos vistos, a cada instante o novo filho de Daniel era mais parecido com o falecido amigo Carlos.
Certa noite, Daniel postou-se em frente à esposa e contou-lhe toda a verdade. Carlos tinha cerca de 5 anos e também escutara sentado ao colo da sua mãe adotiva, Vera.
- Não pode ser verdade meu amor? Por que você não me contou antes?
- Não sei... Sinto-me o pior dos seres... E este menininho é a cópia de nosso amigo em todos os sentidos.
- Mas você disse que o matou?
- Só pode ter sido... E lamento isso todos os dias, não podia mais deixar isso em segredo. Tentei contar à Célia, mas esta achou-me transtornado e não acreditou... Precisava contar isso a ti. Todos os dias peço perdão a Deus por isso. E principalmente ao Carlos, meu amigo...
Neste instante o menininho que estava sonolento no colo de Vera, levanta-se num gesto rápido, abraça Daniel, fica de pé à sua frente segurando suas mãos e diz numa voz com a mesma entonação única do antigo amigo, mesmo estando num corpo infantil:
- Não meu amigo, você não foi culpado por minha morte. É verdade que me empurrou por estar confuso e aflito, mas eu não caí nas águas, você sim. Se tivesse ficado, o toco também o acertaria e nós dois teríamos morrido. Não se culpe. Deus é bom e me permitiu vir novamente para deixar-te bem. Fique tranquilo e busque a verdade, ajude os outros em vez de se culpar. Como você me acolheu, acolha outros que precisam!
Atônitos, os pais adotivos de Carlos o viram desmaiar logo após essa fala. Impressionados, procuraram a esposa do amigo desencarnado. Ela, espírita convicta ouvira o relato e experiente e cheia de fé sorriu-lhes. Sim, com certeza aquela era a verdade, tinha certeza que Daniel nunca teria feito algo de mal com seu amor. Isso unira novamente as duas famílias. A volta de Carlos era uma benção a todos os corações!
E foi assim, seguindo o conselho de uma criança reencarnada, que Daniel teve sua consciência limpa e dali pra frente buscou olhar para os desvalidos do mundo. Auxiliando-os. Não se tornara espírita, mas apenas um grande colaborador de trabalhos em prol da sociedade. E seu continuador, foi seu herdeiro adotivo e grande amigo. Nada é por acaso... Às vezes, é preciso receber uma mensagem direta para acordarmos. É preciso restituir à vida aqueles que mesmo vivendo na carne a perderam nos erros do passado. Por vezes, amigos espirituais vêm à carne para nos auxiliar e continuar nossa tarefa. Enfim, para Deus está tudo encaminhado e certo, para nós, é tudo confuso, pois vemos apenas o ponto presente e nada mais...
Ah, e o pé-de-moleque? Representa aqueles meninos e meninas de rua auxiliados pelos nossos protagonistas, antes amigos e depois pai e filhos... Hoje, ainda mais do que nunca, grandes amigos!
Deus esteja com todos nós!
Jesair Pedinte – 02.11.11

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Bora Viver

Livres

Culpabilidade