Vinte Dias
Vinte dias... Este era o prazo que Honório recebera para influenciar o seu tutelado a uma mínima modificação de conduta moral na atual encarnação... Honório sabia que seu tutelado, Guilherme, dificilmente mudaria, depois de trinta anos de existência terrestre dedicada aos prazeres materiais e sem nenhum foco, ou mesmo, breve olhar para os valores humanos.
Guilherme era o representante puro do orgulho e do egoísmo na humanidade... Isso cortava o seu bondoso coração de mentor dedicado a procurar inspirar o seu querido filho do coração a novos caminhos voltados para o bem comum...
- Não se entristeça assim Honório – disse Afonso, amigo e espírito de muita sabedoria e humildade.
- É muito difícil, caro amigo. Ver o seu tutelado e não poder fazer quase nada por escolha dele e não minha.
- Você já fez e continua fazendo muito. Além disso, sabe que a doença que virá, ou descerá de seu períspirito ao corpo físico é o remédio amargo do qual ele necessita neste instante.
- Reconheço que sim Afonso. Mas não é fácil ver o meu querido filho do coração padecer.
- Verá que será algo positivo. O que você deve procurar introduzir em seu coração é a resignação e a fé de uma vida melhor, desde que a revolta não lhe atrapalhe. Se ele conseguir vencer os anos de doença com humildade e perseverança, terá avançado muito e poderá aqui permanecer. Caso contrário...
- Ele será transferido deste orbe, certo?
- Sim... Infelizmente por escolha própria... Mas Deus é sábio e justo e mesmo longe da Terra não o desamparará.
- Sei que sim... – depois de olhar a paisagem de um belo lago a sua frente, retomou o ânimo – Não adianta ficar aqui lamentando. Farei o que for possível e necessário para prepará-lo, hoje mesmo buscarei convidá-lo de forma mais decisiva para estar conosco a fim de receber mais orientações, talvez a última antes da doença...
- Muito bem, é bom recobrar o ânimo. Irei contigo e isolaremos a área de outras mentes perversas que com certeza estarão por lá em sintonia com nosso amigo...
Logo mais, na noite terrestre, em alta madrugada, depois de uma forte dor de cabeça provocada pelos amigos a fim de que Guilherme não saísse e se entregasse a prazeres infelizes que impediriam o encontro com os amigos e mentores, adormeceu sob efeito de alotrópicos para amenizar as dores fortes.
Isolado o ambiente, Guilherme foi retirado por Honório e levado até sua poltrona favorita na sala. Lá recebeu passes revigorantes e concentrados na área cerebral a fim de que pudesse gravar bem as palavras que seriam ditas pelo seu mentor naquela noite e ao acordar pudesse relembrar algo que o fizesse refletir e quem sabe mudar um pouco suas atitudes. Após tomar consciência no plano espiritual, Guilherme foi abordado por Honório.
- Olá meu querido filho, tudo bem? Sente-se melhor?
- Quem são vocês? – diz olhando para os dois amigos.
- Somos seus amigos.
- ... Não sei... Nunca os vi...
- Viemos para ajuda-lo. Não percebeu que a dor de cabeça sumiu?
- Claro, eu tomei remédio pra isso.
- Na verdade, os remédios pouco fizeram efeito, nós que auxiliamos a passar a dor completamente.
- Então são médicos! Obrigado então! ... Mas vocês me parecem familiares. Principalmente você – disse apontando Honório em gesto atrapalhado.
- Sim, sou teu amigo há muito tempo e tento te auxiliar nesta vida.
- Um... Mas eu não me lembro de você? Qual é seu nome?
- Honório. Você não deve lembrar bem, pois sou um espírito e te protejo sempre que permite.
- Espírito? Fantasma? Saí daqui! Não gosto disso!
- Acalme-se. Sou como um anjo da guarda.
- Ah sim. Aí tudo bem! O que você deseja seu anjo? – como se fosse uma criança inocente.
- Bem, meu querido Guilherme. Vim para lhe dar uma notícia que você não irá gostar muito.
- Um... não estava gostando disso desde o começo...
- Olhe filho. É preciso que você entenda que Deus tem um plano para todos nós. E este plano é que nós evoluamos durante as várias vidas que temos e nos tornemos espíritos do bem, menos egoístas, menos orgulhosos, mais amorosos e caridosos, preocupados com nossos irmãos.
- Espírito? Várias vidas? Evolução?...
Afonso pede a Honório que vá direto ao ponto e não se preocupe com tantas informações, pois o seu tutelado não entenderia, ainda era um espírito muito imaturo para as verdades espirituais. Exatamente pela sua ingenuidade, estava tendo aquele momento de atenção e carinho da espiritualidade.
- Esqueça isso, o que importa é que às vezes, precisamos tomar um remédio amargo para melhorarmos, como você fez com a dor de cabeça, certo?
- Sim...
- E como você tem sido uma pessoa que só pensa em si. Que não ajuda ninguém a sua volta. Que acha ser o ser mais inteligente e por isso mesmo, superior a todos os outros, sem respeitar a ninguém intimamente, chegou a hora de você adoecer o corpo para perceber que necessita das outras pessoas, necessita de ter mais humildade, simplicidade, educação e respeito àqueles que lhes serve e que convivem contigo.
- Besteira!
- Não, infelizmente não é besteira! Estou aqui apenas para avisá-lo que se você não mudar pelo menos um pouco a sua conduta nos próximos dias a sua doença virá mais forte e intensa e suas dores físicas e morais serão extremamente difíceis, mas são os remédios para sua alma ainda negligente e ignorante ao amor divino!
- Você é um anjo ou um capeta? Está me ameaçando?
- Não, sou um grande amigo que lhe quer bem. Não estou lhe ameaçando, sou um amigo que está lhe alertando sobre a tempestade logo à frente e quer que você tenha tempo de preparar-se para sua chegada. Revista-se de fé! Pense em auxiliar as outras pessoas! A perdoar os erros dos outros! A ser uma pessoa mais humana, menos egoísta! A não se entregar tanto aos prazeres do sexo, da bebida, dos jogos que focam apenas o dinheiro, a submissão, a matéria, a competição exacerbada, a falta de respeito, a violência...
- Você deve ser daqueles beatos do padre daquela igreja que fui. Sabia que não seria bom ir lá... Agora tenho um chato no meu pé!
Honório abaixou a cabeça entristecido, aquele gesto de alguma forma marcou o coração de Guilherme, lá no fundo.
- Tudo bem meu filho... Já fiz o que deveria fazer aqui nesta noite. Se você mudar algo de sua conduta poderei estar por perto lhe protegendo, amparando em sua dor e dando forças para superar tudo com resignação. A dor virá com ou sem minha presença; caso não mude, terei que deixá-lo em seu livre-arbítrio colhendo o que tem plantado quase sem nenhum alívio. Entretanto, lembre-se desta conversa, procure a oração que assim ficará mais fácil estar contigo. Fique com Deus meu querido! Eu o amo muito!
Quase sem poder mais segurar as lágrimas, Honório despediu-se melancólico e amparado por Afonso deixando seu tutelado em espírito sentado na poltrona pensando um pouco sobre tudo aquilo...
Infelizmente, na manhã seguinte Guilherme, sem a dor de cabeça, pouco lembrara daquele encontro. Só havia registrado que um anjo lhe apareceu e lhe advertiu sobre sua conduta e parecia que algo ruim aconteceria... Pensou que deveria mesmo mudar algumas coisas... Contudo, isso só durou algumas horas... No fim do dia não se lembrava mais de nada e voltou a sintonizar-se com os irmãos necessitados dos vícios morais...
Vinte dias depois, começou a sentir fortes dores na região abdominal. Não conseguiu trabalhar. No dia seguinte foi ao hospital levado por um companheiro de trabalho que se preocupou com o colega, tudo inspirado por Honório. Dois dias depois constatou-se que sua próstata estava muito grande e bem provavelmente estaria com um tumor. Entretanto não era só isso... Pelos exames de sangue e outros mais, foi constatado também uma deficiência imunológica muito grave e um bloqueio intestinal gravíssimo, abdômen agudo, digno de cirurgia...
Os dias seguintes foram de muita dor, remédios, exames, soros, cirurgias... Depois de quase três meses de recuperação Guilherme bem abatido ainda sentia muitas dores e sua resistência imunológica estava ainda mais grave. Permanecia internado... Mais exames e finalmente a constatação de uma leucemia das células pilosas, considerável incurável, mas facilmente tratável se for bem seguidas as orientações e o paciente auxiliar a si mesmo cooperando com o tratamento.
Guilherme sentia-se abandonado por Deus, por todos. Os amigos afastaram-se, até porque ele não os tinha verdadeiramente. A família estava longe, em Estado distante e como ele perdera o contato por conta própria era muito orgulhoso para pedir algum auxílio mesmo doente e necessitado...
Revoltado com tudo e todos, não se ajudava no tratamento. Aos poucos foi definhando... Não conseguia lembrar em nada daquele encontro de meses antes com seu mentor Honório que apenas podia observar respeitando o livre arbítrio. Sofria o querido mentor e por vezes pediu a intercessão para o seu tutelado, mas infelizmente ele sabia que era a própria escolha de Guilherme e ele nem ao menos lembrava-se de uma prece.
Inclusive a prece era a condição essencial para que Honório pudesse atuar a fim de auxiliá-lo. Seu querido tutelado não passava nem perto de lembrar desta bendita medida a seu próprio favor. Conquanto, pelo merecimento de Honório, os superiores permitiram mais um encontro com Guilherme. Este sabia que seria difícil a mudança de seu querido amigo, mas não hesitou em tentar uma vez mais!
Durante o desdobramento do seu amigo, agora abandonado até mesmo pelos amigos do vício, só acompanhado agora por entidades revoltadas e grosseiras devido aos pensamentos doentes de Guilherme, Afonso com o auxílio de guardiões isolou o quarto em que o doente encontrava-se e iniciou o diálogo.
- Olá meu filho. Estou aqui novamente para tentar auxiliá-lo...
- Ah... o doutor... – diz melancólico e também irônico.
- Filho, estou aqui para lhe dizer que se você procurar a oração e não se revoltar tanto com sua doença e com Deus, podemos auxiliá-lo a não sentir tantas dores e a passar por isso de maneira mais amena...
- Orar? Deus? Que piada! Se ELE existe me esqueceu aqui doente! Eu quero ser curado! Viver a vida que eu tinha! Gastar o meu dinheiro que está sendo torrado neste hospital!
- Deus nunca se esquece de nós!
- Ah não? O que faço aqui esquecido então?
- Por acaso enquanto você estava saudável lembrou de ajudar alguém doente como você está agora?
- Entendi... Então é castigo? Está certo. Só por que não ajudei ninguém que eu não conhecia, estou sendo castigado...
- Não filho. A doença é fruto da leviandade de seu comportamento. Noites sem dormir. Alimentação precária, sexo desvairado, egoísmo, orgulho, entre tantas dificuldades morais, indiferenças e injustiças que lhe causaram tais doenças. Não coloque a culpa em Deus, pois ela só cabe a você!
- Ok! Ok! Então me deixe em paz! Já que sou culpado o problema é meu! Você não tem nada com isso! E não sou seu filho! Meu pai está longe daqui!
- Por que você não pede ajuda a ele?
- Porque não quero! Deixe-me em paz! Saia daqui!
- Tudo bem. Mas se mudar de ideia, ore! Ore à Deus e Ele te auxiliará e aliviará tua dor.
Honório mais uma vez vai embora abatido, mas com a certeza do dever cumprido! Infelizmente nosso amigo adoecido do corpo, mas principalmente da alma, não mudou em nada seus pensamentos e atitudes...
Ficou o que pôde no hospital particular, até que seu dinheiro acabou e foi friamente mandado para um hospital público onde não conseguiu continuar o seu tratamento como deveria... Perdeu seus bens, foi para as ruas, cada vez mais revoltado e sem dar “ouvidos” aos poucos amigos e pessoas que procuravam auxiliá-lo sob a inspiração do abnegado Honório...
Em menos de dois anos desencarna Guilherme cheio de ódio e com tristeza Honório é desincumbido de sua tarefa, não como um derrotado, mas sim vencedor. A derrota foi única e exclusiva de seu tutelado! Deus é justo!
Guilherme cai nas mãos de companheiros dos vícios e continua suas ações para o mal e a ignorância tendo prazer em ver outros sofrerem... Até que dez anos depois do desencarne é recolhido por guardiões e levado para ser encaminhado a outro orbe mais primitivo... Honório e Afonso, tristes, mas convictos que era o melhor a ser feito, rezam pelo nosso amigo! Pedem a oportunidade de auxiliá-lo mesmo a distância. Os seus superiores permitem que eles acompanhem a caravana do expurgo e auxiliem Guilherme e tantos outros de idênticos vícios da alma a adaptarem-se ao novo mundo de dores e ranger de dentes!
Tantos são os “Guilhermes” do mundo, que a espiritualidade ainda terá muito trabalho em acompanhá-los e cuidá-los até que estes sejam expurgados do orbe terrestre a fim de novos aprendizados ainda mais duros para despertarem para vida eterna! Não sejamos mais um a aumentar essa estatística universal uma vez mais!
Pensemos! Obrigado! Jesair Pedinte – 25.01.1
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