Sentindo o Efeito

Eram quatro horas da tarde. Miguel estava ali, sob o sol quente e escaldante. Buscando o alimento negado por cerca de dois dias. Apenas saciava a sede em fonte pública próxima de onde procurava ficar.
A barriga roncava, os pés no chão já estavam no mínimo assados, cheios de bolhas, algumas já a sangrar. Aspecto triste e sujo. Talvez só não estivesse pior porque vez ou outra se enfiava no lado para tirar um pouco do calor que o envolvia e aliado a isto, a imundície que se apegava à sua pele diariamente...
Procurava alguns restos de comida. Próximo a um shopping movimentado da cidade e daquele parque por onde perambulava enquanto a polícia não o molestava, ele revirava alguns cestos de lixo. Não raras vezes encontrava restos de comida. Com sorte encontrava sanduíches quase intactos que uma barriga rica menosprezara por algum fútil motivo.
Nestas horas sentia como houvesse ganhado um prêmio com um bilhete de loteria. Com mais sorte ainda juntava os restos de alguns refrescos em um só copo e tomava para saciar a sede ou a vontade de beber algo diferente da água lodosa ou da fonte nem sempre limpa, que geralmente buscava saciar-se.
O que acontecera que não conseguia achar nem um pedaço de lanche nos últimos dois dias? Na verdade, perseguição das autoridades, de riquinhos egoístas e maldosos que abusaram do respeito a um ser humano que apenas procurava sobreviver.
Aliás, estes nem consideravam nosso amigo um ser humano. Provavelmente para eles, Miguel valia menos que um bicho abandonado.
Situação incômoda, triste e, sobretudo comum a tantos outros companheiros de desdita. A diferença é que Miguel não sabia ser malandro. Não gostava de enganar as pessoas para comer. Pedia com sinceridade, mesmo assim era julgado como vagabundo e sem vergonha. Quando ganhava uma esmola era com olhar de reprovação, quase um pedido para que sua presença infeliz saísse da frente do seu “benfeitor ou benfeitora”...
Era realmente uma humilhação que infelizmente ele tivera que aceitar e se acostumar. É fácil pensar por que ele não procurou ajuda? As pessoas que batalham sempre têm oportunidades. Pensamento de certa forma verdadeiro. Mas será mesmo que sempre conseguem oportunidades de uma hora para outra.
O processo é lento. Ainda mais para aqueles que começam do fundo do poço dos seres humanos... O resto do mundo era o que Miguel e tantos outros representavam.
Para sair do buraco, sem documentos, sem auxílio da mão amiga que na maioria das vezes não está tão disposta ao auxílio ou a sacrifícios pelo próximo é realmente muito complicado.
Quantos de nós passamos por “Miguéis” e só temos o pensamento negativo de julgá-los infelizes, vagabundos entre outros pensamentos...? Quem de nós se compadece com estes irmãos infelizes e estende com alegria e sinceridade as mãos para algum tipo de auxílio?
Responsabilidade do governo? Também! Conquanto a responsabilidade é nossa da mesma forma. No mínimo deveríamos oferecer o necessário para a sua sobrevivência momentânea. Se podemos dar algum alimento, oferecer um local para o banho e roupas limpas para vestir, além de encaminhar para um local acolhedor, saber se informar quanto aos programas de assistência aos moradores das ruas é dever de cidadãos que nós somos.
Esperar de braços cruzados não altera a realidade. Pensamos que estes irmãos enfeiam a cidade pela aparência deprimente com os quais se apresentam, talvez este seja um reflexo de nós mesmos, em nosso íntimo!
Miguel segue o seu caminho. Intuído pelo seu guia espiritual iluminado pelas bênçãos do Mestre, aquele encaminha seu tutelado para áreas mais simples da cidade na qual o sofrimento toca mais os olhares que se apiedam. Encontra auxílio, depois de dois dias volta a comer e antes disso, ainda tem tempo de agradecer a Deus pela dádiva.
Quantos de nós não agradecem pelo alimento diário, pela morada que temos, pela família que fazemos parte? E o nosso Miguel, sem teto, sem comida, sem família e alguém que se interesse propriamente por seu destino sabe que Deus o olha e encaminha.
Saciada a fome, pede trabalho. Miguel não quer ser peso. Diz que pagará a comida com o suor do rosto. Oferece-se para capinar o quintal da benfeitora que lhe deu de comer. Com alegria trabalha. Ganha a oportunidade de um banho e uma troca de roupas limpas e até mesmo um quartinho sujo no fundo do lote para dormir aquela noite. O marido da senhora bondosa ajuda-o a arrumar o quartinho que após ser limpo recebe um velho colchão e travesseiro.
Miguel sem palavras agradece com um aceno e o sorriso sem graça. Novamente come antes de dormir. Dádiva incomum a um ser que nem se quer era considerado humano há poucas horas... Pela primeira vez em meses dorme como um anjo. Descansa o corpo alquebrado. No outro dia o marido o convida para auxiliar no seu trabalho. Passa a ser auxiliar de pedreiro. Ganharia o alimento do dia e mais uma noite no quartinho. Caso gostasse e aprendesse rápido, até começaria a ganhar um salário.
Foi assim, na simplicidade de mãos estendidas. Mãos simples e sem luxo que Miguel voltou a ter vida. Aos poucos foi aprendendo, esforçando-se para melhorar. Conseguiu ter documentos de volta, e desta maneira, voltou a ser cidadão perante a lei. Com o tempo se esmerou na arte da construção.
De auxiliar, passou a pedreiro e anos depois a mestre de obras requisitado e bem quisto por todos! E muito melhor do que tudo isso foi o sentimento de gratidão de nosso amigo pelos seus benfeitores. A começar por Deus que lhe deu a vida e as oportunidades! Ao seu anjo guardião que lhe tomou nas mãos e lhe direcionou os passos ao lar de seus amigos eternos! Ao casal que ganhara um novo filho do coração!
Com o tempo, nas dificuldades de velhice de Armando e Alice, seus benfeitores que o acolheram nos tempos difíceis, Miguel foi o anjo encarnado oferecendo arrimo, proteção e apoio físico, moral e espiritual aos dois. Gratidão eterna pela oportunidade de ter uma nova vida!
Miguel nunca os deixaria a mercê da má sorte, ou melhor, das intempéries da vida. Espalhava sua alegria e gratidão aos pares que conviviam com sua presença alegre e saudável. Exemplo de trabalhador e superior de seus comandados. Vida plena e justa!
Meus irmãos, é preciso pensar mais sobre os potenciais humanos. O mendigo de hoje pode ser o rico de ontem, o cientista soberbo do passado, o engenheiro magnífico que deixou a carne ou o rei que não soube aproveitar o poder, como também pode ser o benfeitor de uma comunidade que voltou para testar a própria fé e buscar ser exemplo de vida ao lutar e vencer as dificuldades do mundo, mesmo contra a hipocrisia e baixeza humanas.
Olhemos pois, com mais carinho os irmãos que andam nas ruas, estendam as mãos ou ao menos lhe deem respeito e incentivem-nos a caminhar e acreditar na vida! Enfim, ame-os com dignidade e sinta o efeito que a vida oferecerá ao vosso coração!
Obrigado! Jesair Pedinte – 17.08.11

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Bora Viver

Livres

Culpabilidade