Sentir e Viver
Era o mês de maio que estava correndo... Aquelas primeiras noites mais gélidas da madrugada goiana começava a se fazer mais intensa.
Nestas ocasiões, marquises, toldos, sacadas e o que mais desse uma proteção mínima quanto ao relento servindo de teto perante o desabrigo seria uma dádiva divina aos corpos cansados, trêmulos e por vezes desiludidos, desesperançados, humilhados.
Quantas vidas nas ruas são jogadas dia após dia... E quem faz algo? Poucos... Marco era um rapaz de seus vinte e poucos anos. Na rua já era diplomado, vivia perambulando há cerca de dez... Quinze anos...
Sem família que nem mais se lembrava quando havia feito parte de uma, vivia a esmo. Era um “abandonado da sorte”. Já furtara, já se drogara e por incrível que pareça havia desistido. “Aquilo não era pra mim” – pensava. Vivia de bicos, e pequenos furtos para se alimentar. Vigiava carros, ajudava nas feiras. Vez ou outra se juntava a um bando, mas como não gostava de violência, logo se afastava... Vivia assim, sobrevivia, na verdade...
Quantas vezes apanhara? Fora levado a chamada “FEBEM” como um criminoso. Será mesmo um crime tão hediondo assim furtar para comer? Ou crime é o que nós deixamos de fazer para ver um garoto, um jovem com fome. Será culpa dele apenas? Ou de todos nós?
Dormia o mais escondido possível. Se é que poderíamos dizer que dormia. Acordava sempre assustado, pois de corpo mirrado, não apanhava só da polícia, mas de antigos companheiros ou de desconhecidos que diziam ser “donos do pedaço”. A vida cruel das ruas só lhe ensinava que o mais importante era saber ser forte ou esperto. Como ele não possuía forças, preferia ser esperto.
Assim vivia Marco. Às vezes comia, às vezes não. Trabalhava quando podia e furtava quando precisava comer.
Contudo, o mais interessante de tudo é que Marco repartia tudo de bom que conseguia ganhar, comprar ou furtar com outros colegas de infortúnios. No começo ele era sempre roubado quando tinha algo. Entretanto, depois que começou a dividir, alguns colegas de desdita o respeitavam, pois sabiam que ele compartilharia o que conseguisse.
Enfim, naquela madrugada de maio. Um vento frio assobiava e Marco sem agasalho ou coberta tremia embaixo de alguns pedaços de papelão. Quase não dormia com medo de tudo e de todos, além do frio que sentia. Aliás, já nem sentia os pés, as mãos de tanto frio que fazia... lá pelas tantas horas, quase amanhecendo dormiu...
Logo que dormiu, começou a sonhar e viu um anjo a lhe abraçar e dizer, “não se preocupe, hoje você terá o que comer e o que lhe cobrir para proteger do frio. Amanhã encontrará um lar e se persistir um trabalho digno. Seu tempo de provação se finda, basta que confie em quem lhe estenderá a mão”.
De repente, o anjo pareceu iluminar-se todo, tanto que ficou sem ver e acordou com uma luz passando à sua frente. Assustou-se. Não sabia se sonhava e via o anjo ou se acordara e estava prestes a receber uma surra, mais uma da polícia.
Mas não, vieram algumas pessoas até ele e perguntaram se estava com fome, se queria comer. Eram alguns adultos e outros jovens. Havia alguém que cantava e tocava um violão. “Que música boa” – pensou. Estava com sede e logo lhe ofereceram água, com fome e lhe deram alguns pães, rosca. Rosca? Há quanto tempo não experimentava uma... Lhe deram escova de dente e pasta? Nem se lembrava da última vez que escovara os dentes. Estava com frio e ganhara uma calça e camisa. Podia tomar banho porque havia sabonete e se barbearia, pois havia um “prestobarba”... Um cobertor! Não, não podia acreditar! E mais, leite com achocolatado.
Contudo, melhor do que isso foi que conversaram com ele. Perguntaram se ele estava bem, pegaram no ombro dele. “Será mesmo que estão falando comigo”? Era, quiseram saber de sua vida e em poucos instantes a resumiu. Disse que queria uma oportunidade, mas não conseguia, não sabia como, sempre vivera assim, não tinha família... conversaram com ele, lhe indicaram que procurasse um albergue. Falaram-lhe de Jesus. Ficou encantado! Seria esse Jesus aquele anjo que lhe aparecera em sonhos? Tinha certeza que sim, pensava ele!
Pediu para que lhe fizessem uma prece e se possível lhe dessem mais leite quente. A caravana se despediu após lhe ensinar como chegar ao albergue. Ele os agradeceu.
Após irem embora, animado, decidiu ir à feira conseguir algum bico aquele dia. Conseguiu algo e trabalhou até o sol a pino. Com um pouco de dinheiro, comprou algo de comer e buscou a instituição. Encontrou-a e foi acolhido. Logo tomou um banho, trocou de roupa, descansou.
No dia seguinte, após o café e conversar com o assistente social procurou ser útil. Não queria ficar ali parado. Sim, ajudou ao máximo. Durante os dias seguintes, ao contrário dos demais albergados, buscou trabalhar, servir e ser gentil. Conquistou a simpatia dos funcionários, internos e também do diretor do local. Este, alguns dias depois o indicou para trabalhar como auxiliar de cargas em um mercado. E pela indicação foi contratado em período de experiência.
O diretor lhe ofereceu para que ficasse mais alguns dias até conseguir se estabelecer no emprego e alugar um quarto. E foi assim... aos poucos, Marco deixou as ruas. Com trabalho duro e honesto, muito auxílio de várias pessoas passou a ser cidadão. Consciente de que não poderia parar por ali, buscou os estudos.
Anos depois o vemos trabalhando ainda duro, mas buscando crescer mais e mais. Segue o seu caminho, agora mais estável e formando uma família, prestes a se casar. Agradecido à Deus não esquece o dia em que o anjo o visitou, o dia que recebeu o primeiro auxílio que lhe tirou o frio e a fome eminentes e lhe deu ânimo para virar sua vida! Não se esquece de Jesus e procura sempre auxiliar os que têm menos.
São vidas e mais vidas que vivem como nosso irmão viveu. São desprezadas por nós que temos algo provindo do Criador. Achamo-nos no direito de esquecer os desvalidos. Quanta arrogância! Não nos limitemos em possuir bens, abriguemos em nosso coração o desejo de auxiliar. Não desistamos perante as críticas quando “damos o peixe sem ensinar a pescar”. Ninguém aprende a pescar com estômago vazio, com abandono e desprezo da sociedade que não oferece oportunidades suficientes. Pensemos!
Obrigado! Jesair Pedinte – 03.08.11
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